2 de ago. de 2016

Quando os Amantes Dormem









Quando as pessoas se amam
E querem se amar,
Selam um pacto: dormir juntas.
E quando se fala " dormir juntos "
O sentido é duplo:
Significa primeiro amar acordado
Em plena vigília da carne,
Mas, depois,
Na lansidão do pós-gozo,
Deixar os corpos lado a lado,
À deriva, dormindo talvez.

Na verdade, os amantes,
Quando são amantes mesmo
Mesmo enquanto dormem se amam.
Agora ouço esses versos de Aragón
Cantados por Ferat:

" Durante o tempo que você quiser 
Nós dormiremos juntos ".

E penso. É um projeto de vida, 
Dormir juntos, continuamente. 
A mesma ambigüidade: 
Dormir/amar juntos, dormir/acordar juntos, 
Ou então, dormir/morrer de amor juntos.

Deve ser por causa disto 
Que os franceses chamam o 
Orgasmo de "pequena morte". 
Deve ser por isto que os amantes julgam poder 
Continuar amando mesmo através da morte, 
Como Inês de Castro e D. Pedro, 
Que foram sepultados um diante do outro, 
Para que no dia do reencontro 
Um seja o primeiro que o outro veja.

Amor: um projeto de vida, um projeto de morte. 
Se numa noite dessas 
O vento da insônia soprar em suas frestas, 
Repare no corpo dormindo despojado ao seu lado. 
Ver o outro dormir é negócio de muita responsabilidade. 
Mais que ver as águas de um rio represado 
Gerando uma usina de sonhos, 
É ver uma semente na noite pedindo um guardião.

Pode ser banal, mas é isto: 
Amar é ser o guardião do sonho alheio. 
Os surrealistas diziam: 
O poeta enquanto dorme trabalha. 
Pois os amantes enquanto dormem, se amam. 
Se amam inconscientemente, 
Quando seus desejos enlaçam raízes e seivas. 
O pé de um toca o pé do outro, 
A mão espalmada corre sobre o lençol e toca o 
Corpo alheio e, dormindo, se abraçam animados. 
Quando isso ocorre, pode ter vários significados. 
Talvez um tenha lançado um apelo silencioso ao outro: 
"Ajude-me a atravessar esse sonho", ou: 
"Venha, sonhe esse sonho comigo, 
É bonito demais".

E o outro, às vezes, sem se mexer, 
Parte em seu socorro. 
É que certos sonhos, 
Sobretudo os de quem ama, 
Não cabe num só corpo. 
Transbordam os poros da noite e 
Pedem cumplicidade. 
E se há um pesadelo, aí um se agarra 
Ao tronco do outro na crispação do instante, 
E o corpo do parceiro é bóia na escuridão.

Por isto, no ritual do casamento, 
Quando o sacerdote indaga 
Se os que se amam sabem que 
Terão que se socorrer na saúde 
E na doença, na opulência e na miséria etc... 
Deveria se inserir um tópico a mais e advertir:

... amar é ser cúmplice do sonho alheio. 
Passar a metade da vida dormindo ao lado do outro. 
Há pessoas que vivem 25 anos - bodas de prata, 
50 anos - bodas de ouro, 
75 anos - bodas de diamante - ao lado do outro, 
E não sabem com que o outro sonha.

E há quem passe uma tarde, 
Uma noite ou uma temporada ao lado 
De um corpo e sabe seus sonhos para sempre.

Engana-se quem escuta 
O silêncio no quarto dos que amam. 
Estranhos rumores percorrem o sonho alheio. 
Não é o rugir do tigre pelas brenhas. 
Não é o bater das ondas na enseada. 
Nem os pássaros perfurando a madrugada. 
São os sonhos dos amantes 
Em plena elaboração. 
E se numa noite dessas 
O vento da insônia de novo soprar em suas frestas, 
Olhe pela janela os muitos 
Apartamentos onde pulsam dormindo os amorosos. 
Quando se compra um apartamento novo, 
Nas alturas, alguns 
Compram lunetas e ficam 
Vasculhando a vida alheia. 
Mas para ouvir o ruído dos sonhos 
Basta abrir os ouvidos na escuridão. 
Os sonhos pulsam na madrugada.

Era uma vez um chinês 
Que toda vez que sonhava com sua amada 
Acordava perfumado. 
Deve ser por isso que, 
Ainda hoje, o quarto dos amantes 
Amanhece com um perfume de almíscar, 
Lavanda e alfazema. 
E é comum achar troféus dos sonhos 
Ao pé da cama de quem ama. 
Quando se abre a pálpebra do dia, 
Aí pode-se ver um unicórnio 
De ouro e uma coroa de rubis.

À noite os sonhos dos amantes se cristalizam 
E de dia se liquefazem em beijos e lágrimas. 
Quem ama diz boa-noite 
Como quem abre/fecha a porta de um jardim. 
Não apenas como quem viaja, 
Mas como quem vai para a colheita.

Quando se ama, 
Acontece de um habitar o sonho do outro.



Affonso Romano de Sant'Anna


©



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