20 de set. de 2016

Ficar (bem) sozinho








Certa vez almocei, em Recife, com um juiz famoso por ser muito ponderado e justo. "Ele é quase um sábio", diziam as pessoas. Durante a conversa do agradável almoço, ele me contou que estava se preparando para, pela segunda vez, percorrer o famoso caminho de Santiago de Compostela, na Espanha. Quando indaguei sobre o que o motivava a refazer tal aventura, ele me disse, calmamente: "É que ainda deixei alguns assuntos pendentes comigo mesmo". 
A resposta do juiz teve sobre mim um efeito revelador, impactante, violento, quase um soco no estômago, pois naquele momento pensei sobre quantos assuntos eu, provavelmente, tinha pendentes em minha vida. Então, na viagem de volta usei as horas de voo para fazer uma lista de tais pendências, com o cuidado de relacionar as pessoas a quem as mesmas se referiam. Isso foi fundamental, pois tomei um imenso susto: o sujeito principal de minhas pendências, que não eram poucas, era eu mesmo. Era a mim que eu devia a maioria das explicações, respostas e justificativas. Era eu mesmo que estava do outro lado da linha do telefone imaginário, enquanto eu - o outro eu - dizia, como um atendente de telemarketing emocional: "Vou estar transferindo sua pergunta para o Universo. Por favor, aguarde e não perca a esperança. Sua ligação é muito importante para nós". 
Olhei pela janela do avião e comecei a refletir que, se a conversa com meu amigo magistrado não me convenceu a passar um mês caminhando pelo interior da Espanha, com certeza criou em mim um forte desejo de viajar por meu próprio interior, percorrendo o caminho dos meus valores, subindo as colinas dos meus medos, visitando os vales dos meus sonhos. Percebi que era essa a viagem que eu estava precisando fazer, para a qual não existem roteiros pré-formatados nem guias turísticos disponíveis. Naquele momento eu estava viajando a cerca de 900 quilômetros por hora, e não pude evitar a lembrança de uma frase de R.W. Emerson: "O que está atrás de nós e o que está à nossa frente são coisa pouca, comparados com o que está dentro de nós". 
Viagem rumo ao interior
Quando examinei ainda mais de perto a proposta dessa viagem interior, entendi que ela era importante por dois motivos: primeiro porque, enquanto eu não encontrasse a paz interior, carregaria os conflitos para onde quer que eu fosse, o tempo todo. Segundo porque a qualidade das relações com as outras pessoas depende, a priori, da qualidade da relação que eu estabeleço comigo mesmo. Bingo! Estou precisando ficar um pouco sozinho, travando duros, mas necessários, diálogos interiores. Pousei em São Paulo carregando na bagagem o firme propósito de me dedicar mais a mim mesmo. 
Pois é, mas como? Essa é a pergunta que vale 1 milhão. Como criar uma relação interna se as relações externas demandam muito de nosso tempo? Como conversar comigo mesmo sem ser atrapalhado pelos ruídos exteriores, cada vez mais fortes? Como dizer ao resto do mundo: "Agora não posso, estou ocupado comigo mesmo!"? 
Deduzi que precisava ter disciplina para estar mais tempo em minha companhia. E, para isso, foi necessário criar oportunidades para estar só, sem precisar viajar para o Tibete nem percorrer o caminho de Santiago. É uma questão de pragmatismo. Estar só, não por imposição, mas por opção, é a única chance em que o estar só não se transforma em um sofrimento, nem faz surgir aquele sentimento maldito de abandono e de desespero. Lembrei-me, então, da época em que fiz terapia, e a psicóloga me dizia: "Você está aqui comigo para se encontrar com você mesmo. Eu sou apenas o caminho, o meio, mas não terei nenhum valor se você não chegar ao fim da jornada, ao seu interior, sozinho". E não é que ela tinha razão, a danada? Eu ia ao seu consultório para ficar sozinho, para me encontrar comigo mesmo, e não para visitá-la. 
Pois é, às vezes nós precisamos do outro até para ficarmos sozinhos. Essa aparente incongruência é uma herança de nossa história humana, em que a sobrevivência de cada um dependia do grupo. Ainda depende, mas o coletivo às vezes faz o contrário, e acaba matando o individual. É quando você perde o valor de sua própria essência e passa a ser apenas parte de um todo. Nesse caso, seus valores são os valores do grupo, seus sonhos são sonhados em conjunto, seus medos são compartilhados porque são comuns. E você é levado pela onda e deixa de ser você mesmo, uma vez que não se dá o direito de ficar só, e, aliás, nem acha que isso tem alguma importância. Cuidado! Você pode estar com a síndrome do coletivismo, que faz a pessoa sentir-se segura apenas quando está acompanhada. Equivale a ter medo de si mesma. 
Por isso, até em respeito ao outro, precisamos criar os momentos para estarmos apenas conosco, sem depender de outras pessoas; ou apesar delas. Há meios clássicos, como retiros, mosteiros e templos das várias religiões, mas eles são apenas isso ­ meios. De nada adiantarão se você não criar a consciência do estar só, que é diferente de ser solitário. Aliás, entender essa diferença é o primeiro passo. 
Só, mas não solitário
Em inglês há um recurso linguístico para entendermos essa sutileza. Recorrendo à língua de Shakespeare, encontramos duas palavras distintas: loneliness e aloneness. Parecem sinônimos, mas não são. Traduzindo, loneliness quer dizer exatamente solidão, a condição de estar isolado, desacompanhado, solitário, abandonado. É triste estar em loneliness! Já aloneness tem um sentido positivo, ­ significa que você está isolado, sim, mas porque você decidiu se isolar. Significa estar em companhia de si mesmo com algum objetivo nobre, como refletir, meditar, acalmar-se. 
O interessante é que a primeira situação pode ser obtida independentemente de se estar ou não afastado de pessoas. O habitante de uma grande cidade, cercado por milhares ou até milhões de pessoas, pode estar no mais profundo estado de loneliness. É possível ser um solitário até convivendo e dormindo com outra pessoa ­ que é o pior dos castigos. Na outra mão, buscar um estado de solidão voluntária, estar em aloneness, pressupõe dar um tempo nas relações, o que pode acontecer até dentro de casa, naquele momento em que você pede - e é entendido - para permanecer quieto, em seu canto. 
A grande vantagem de estar só é a ausência de interferências. Quando estamos acompanhados, ainda que por apenas uma pessoa, nosso pensamento receberá, necessariamente, a influência do pensamento do outro. E isto é bom, pois as interações ampliam os conceitos, aumentam a compreensão, enriquecem a cultura, esclarecem as dúvidas. Até aí, tudo bem, mas que é necessário interromper a ligação um pouco, para decantar as idéias, ninguém questiona. O poeta indiano Rabindranat Tagore, ganhador de Nobel, disse, a respeito de estar só: "Nunca ninguém se perdeu; tudo é verdade e caminho". Para o poeta pensador, estar só é parte da estratégia da vida para nossa evolução. 
Pensando bem, foi quando estava só que eu tive os grandes momentos de inspiração, tomei as principais decisões de minha vida, cheguei mais fundo na análise de minhas angústias, experimentei o prazer de minhas certezas. É quando estou só que a leitura faz mais efeito e a escrita flui com naturalidade. Sozinho, percebo que a música está tentando me fazer companhia. Foi na imensa solidão de meu pequeno quarto de adolescente que decidi que iria dedicar-me a algo que envolvesse a alma humana. 
Amo imensamente minha mulher, tenho uma família em que os membros se apoiam e se curtem, possuo uma legião de amigos alegres e disponíveis. Sou dessas pessoas privilegiadas que podem se dar ao luxo de estar com alguém em todas as ocasiões. Mesmo assim, preciso da solidão, da aloneness redentora. É claro que a solidão seria imensamente angustiante se não tivéssemos o poder de interrompê- la buscando a companhia de alguém. Pois, da mesma maneira, a convivência com pessoas também seria uma maneira certa de produzir angústia, não fosse a possibilidade de ficarmos a sós, oportunamente. 
O paradoxo da solidão
A escritora Lya Luft poetizou que "a solidão é um campo tão vasto que não deve ser atravessado a sós". Pois quando li esse pensamento pela primeira vez, eu me dei conta do valor de tal campo. Tenho o hábito de me lembrar das pessoas que amo quando estou vivenciando um momento de grande prazer ou felicidade. Não consigo, por exemplo, não pensar em minha Lu, a companheira de sempre, quando um pôr-do-sol se descortina inadvertidamente diante de meus olhos. Pois é o que sinto quando estou em um momento de extrema paz comigo mesmo. Está tão perfeito este momento que eu adoraria reparti-lo com quem amo. 
Só então me dou conta do contrassenso da situação. Em minha solidão só caibo eu. Ou melhor, eu e meus sonhos. Aqueles dos quais fazem parte tantas outras pessoas, sem as quais a vida não teria sentido. Mas o momento de sonhar é um momento de concha, de casulo ­ um momento de estar só. Sim, pois até o sonho que se sonha junto, como queria Raul Seixas, começa com um sonho que se sonha só. 
O paradoxo da solidão é que ela nos prepara para a convivência. Estar só é promover a recarga para estar junto. Sim, pois, ao conviver plenamente consigo mesmo, um homem aprende que precisa do outro para ser completo. Uma vez que somos anjos de uma asa só, e só voamos em conjunto, precisamos, antes, cuidar de nossa asa. Assim faremos nossa parte. A parte em que nos doamos por inteiro, porque inteiros estamos. 




Eugenio Mussak é educador e escritor




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